Já considerávamos a temporada 2021 de montanhas brasileiras concluída, afinal o inverno estava no fim e as condições de primavera e verão não são as mais propícias. Contudo, nosso grupo de trekking intimou-nos a fazer uma visita ao Itapiroca nos dias 04 e 05 de setembro.
Era uma ótima oportunidade, primeiro de subir uma montanha com o grupo, já que fizemos inúmeras outras trilhas e travessias, mas montanha ainda não enfrentamos. O segundo motivo é que ainda não subimos no Itapiroca, seja por inconvenientes como o tempo na travessia dos 5 cumes já contada aqui, ou por falta de tempo.
Para dar conta precisamos passar a noite na estrada. Nosso grupo possuía pessoas sem experiência em trilhas de montanha então a duração da trilha seria longa e não queríamos anoitecer na trilha ou ficar sem espaço de montar as barracas, pois nos últimos tempos temos visto um fluxo muito grande nas montanhas. Muitas vezes as áreas de camping ficam lotadas, então não queríamos ter dificuldades para montar as barracas.
Dia Primeiro - Ascenção
Chegamos à Fazenda Pico Paraná às 06:45, já havia muita gente acampada e estacionada. O fiscal do estacionamento falou que a maioria era bate-volta e não teríamos problemas para acampar. Quando perguntei sobre o ponto de controle do IAT, o rapaz, meio chateado, disse que não deveria identificar-me no IAT, que o controle da trilha sempre foi feito pela fazenda. Quando tentei convencê-lo da importância do cadastro, ficou estressado e respondeu de forma ríspida.
Nesse imbróglio o grupo já se arrumara para partir. Então partimos pela trilha da fazenda uma hora depois da chegada, numa ascensão contínua desde os primeiros metros.
Poucos minutos depois começou o tráfego de pessoas. O primeiro grupo a chamar a tenção foram 5 pessoas nitidamente fora de forma. Sem mochilas, seu peso era carregado por um guia, sem pinta de guia, mais tarde soube que era o guia porque estava organizando o grupo para as fotos na Pedra do Grito e o chamaram de guia. Os cidadãos passaram por nós e debocharam da nossa paciência, alguns chegaram a insinuar terem experiência, com comentários desnecessários. Nós continuamos a marcha constante, e logo depois os vimos alguns metros à frente apoiados nas árvores para descansar. Eles iriam nesse ritmo tentando não serem deixados para trás até pouco antes do Getúlio quando já estavam falando em desistir.
Outro encontro curioso foi com uma mulher de aproximadamente 50 anos que cruzou nosso grupo seis vezes. Ela disse que fez duas ascensões até o Getúlio e uma até o A2 do Pico Paraná. Todas em ritmo de corrida, e a última vez que a encontramos, voltava do A2, já na bica antes da bifurcação do Itapiroca.
Nossa primeira parada foi na Pedra do Grito. Quando chegamos éramos só nós e outro grupo saindo, mas em 15 min já havia meia centena de pessoas no lugar. Nesse local ficamos estarrecidos com o efeito da seca. A Represa Capivari está praticamente seca, os barrancos que antes eram pequenos traços amarelados às margens agora são imensos bancos de areia/argila que começaram a brotar vegetação.
No ano de 2020 e 2021 o Paraná passa por uma das piores estiagens das últimas décadas. Na capital, Curitiba, o rodízio de abastecimento de água já dura quase 2 anos e as perspectivas são péssimas.
Como a muvuca aumentou muito rápido, resolvemos deixar para comer algo mais à frente e seguimos na subida. Aproximadamente 10h os grupos de corredores de montanha começaram a aparecer, pelo menos 4 deles. Alguns cuidadosos e respeitosos, outros muito mal educados atropelando as pessoas e gritando feito mulas na trilha. Nessa hora, também, as arapongas começaram uma cantoria admirável. Uma cantava nas encostas do Taipa outra respondia no vale do Getúlio, outras cantavam no Caratuva etc.
A araponga é uma ave de plumagem branca com garganta verde escuro. Seu canto lembra um ferreiro forjando uma chapa de aço com a marreta. Ela geralmente escolhe um árvore saliente na mata com galhos ralos que vazem para fora da floresta, no entanto em local de difícil acesso e distante do fluxo de pessoas. Portanto muito difícil de avistar. Quem a avista fica impressionado com o timbre e a cor verde em contraste com o branco no momento do gorjear.
Nossa próxima parada foi o Morro do Getúlio às 11:00. Primeiro chegamos eu e a Bruna, logo depois vieram os demais do grupo. Nessa altura o Getúlio parecia qualquer outra coisa que não fosse uma montanha. Dezenas de pessoas. Uns bebendo, fumando, cantando, dançando, ouvindo música alta, tinha até mulher de biquíni fotografando. Espírito de montanha: zero. Situação tão chata que resolvemos parar para se alimentar alguns metros antes do morro em um recuo da trilha. Depois só passamos por cima do Getúlio e seguimos a marcha. Daqui para frente diminuiu o número de pessoas.
O único grande grupo que cruzamos foram 15 pessoas do interior do estado que estavam acompanhados de uma "agencia" e prometiam ir até o cume do PP.
A trilha que, até o Getúlio, era tranquila se torna um pesadelo. Um dos piores trechos de trekking que já fiz em todos esses anos está nesse pedaço da trilha branca do Pico Paraná, entre a bifurcação do Caratuva e o A1. A calha de caminhada fica irregular, muitas vezes inclinada para a lateral e para piorar muito, milhares de raízes transpassam o caminho. São raízes salientes que estão a até 80 cm do solo exigindo que cada passo seja calculado sob a pena de quebrar a perna ou cair feio, caso escorregue ou prense o tornozelo.
Não mais que 3 km tem esse inferno, contudo são custosas hora e meia de caminhada. No segundo terço das raízes paramos na bica de água, o último ponto para quem vai ao Itapiroca, para abastecer os cantis e comer mais alguma coisa.
Quando chegamos na bifurcação de saída da trilha branca encontramos um grupo que estava retornando após errar a trilha do PP e ter caminhado algumas centenas de metros em direção ao nosso destino.
Essa última parte não custou mais que 40 min e finalmente às 14:15 saímos em um dos cumes falsos do Itapiroca. O tempo ainda estava perfeito, mas dava sinal de mudança com grandes nuvens se formando na direção da Baía de Antonina. Achamos um local para montar acampamento escondido de um possível vento e assim que se reunimos todos, subimos a trilha para o cume.
Um ponto curioso do Itapiroca é que o livro de cume não está, claramente, na parte mais alta. Ele fica no último falso cume, cravado numa grande rocha ao lado da trilha. O cume mais alto fica quase do outro lado da montanha, mas não é um local aberto. Há sim algumas rochas que dão vista para o entorno, mas os visuais mais belos estão no falso cume do acampamento ou na pedra do outro lado do cume, na trilha que vem do Cerro Verde.
Diferente daquilo que esperávamos, no acampamento eram nossas barracas e mais 4 apenas, todos muito calmos e sem barulheira. Não fosse o chuvisco que começou a cair às 17:10, teríamos anoitecido de frente para o gigante PP observando as lanternas na crista para o A2 ou o cume.
Dia Segundo - Coroando o Pico Paraná
O dia 05 amanheceu fechado. Antes mesmo da alvorada caiu a última garoa. Quando saí da barraca o céu estava dramático, camadas sobre camadas de nuvens densas e escuras escondiam qualquer vestígio do Sol. O Pico Paraná, na nossa frente, continuava imponente. Várias barracas coloriam o acampamento A2 bem no flanco do gigante. Ao nosso redor tudo estava úmido, só os arbustos já haviam enxugado devido a brisa que soprava continuamente.
Aos poucos as demais barracas foram abrindo e o acampamento ganhou vida. Algumas pessoas já foram desmontando tudo e começando a descida, um grupo seguia dali para o PP. Nós ficamos sentados de frente para o gigante esperando que o Sol desse sinal, mas nada. Então fomos tomar café e bater papo para às 07:45 voltar ao platô. Às nuvens estavam se movendo, ficamos na expectativa.
De repente alguns raios vazaram dando um colorido especial ao vale. Aos poucos os raios foram trocando de posição, iluminando pontos diferentes até que como uma coroa deram um brilho especial ao Pico Paraná. Foram poucos minutos mas únicos. Logo as nuvens fecharam novamente e tudo ficou azulado mais uma vez.
Desmontamos o acampamento e começamos a descida. Percorremos o mesmo caminho, agora mais fácil por ser descida e estar mais leves. Antes de entrar na mata vimos um helicóptero dos bombeiros pairar sobre o A2, provavelmente um resgate - mais tarde soubemos que uma pessoa quebrara ossos ao pular uma pedra e precisou de ajuda.
Apreensivos, afinal é um ser humano que havia sofrido algum acidente, entramos nas raízes e descemos. Durante o caminho encontramos centenas de pessoas novamente subindo. Muitas delas sem respeito pelos demais, sem espírito para a montanha. Acelerados, irritados, mau humorados.
No nosso ritmo descemos, e quando fui conversar na fazenda para saber sobre o tal acidente, me disseram que nada sabiam. Nem discuti ou questionei, mas fica claro a importância do montanhismo ser organizado e as pessoas respeitarem os procedimentos, cadastrando no posto do IAT, mesmo que tenha se cadastrado em alguma sede de fazenda.
Nosso banho de retorno precisou ser no rio que corta a fazenda, pois o fluxo intenso de pessoas e a estiagem deixaram a base sem água. Ainda bem que o rio ainda existe e nos brinda com suas águas geladas.
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