Era o dia esperado para o ataque ao cume Prateleiras. Estávamos ansiosos, depois de ter alcançado o cume do Agulhas Negras, o Prateleiras era nosso segundo desafio. Aqueles que tinham realizado a ascensão nos últimos dias nos recomendaram, que seria tarefa mais difícil que o mais famoso e mais alto do parque.
Acordamos às 06:00, na verdade começamos a levantar esse horário, já havíamos acordado uma hora antes com o movimento das tropas que tomavam instrução. Preparamos um café da manhã típico, pão, ovos e a bebida. Depois do desjejum, emprestei o fogareiro para a Sr. Mônica, nossa vizinha no camping. Ela teve o fogareiro raptado pelo lobo-guará na noite anterior, depois da tentativa de roubar um cooler no acampamento, restou ao canídeo levar um fogareiro que estava do lado de fora das tendas.
Pegamos a trilha às 07:00, uma estrada no primeiro quilômetro. A primeira atração foi o mirante da Cachoeira das Flores: queda formada pelo Rio Campo Belo, o mesmo que vai cruzar toda a extensão do parque a partir dali. Optamos por não descer na água, estava uns 5º e acreditávamos voltar a tempo para aproveitar o fim do dia livre e conhecer a cachoeira mais intimamente. Um pouco mais a frente a estrada vai se acabando até tornar-se uma carrasqueira. Antes dos últimos metros, um pedaço pavimentado.
Nas margens da estrada algumas das plantas têm suas flores envolvidas em saquinhos de uma malha muito fina, o que parece uma aberração, na verdade, faz parte do programa de reforço à polinização. As plantas possuem gametas separados e sua reprodução requer o contato entre estes gametas. Naturalmente o processo é realizado através do pólen que os insetos e pequenas aves como os beija-flores transportam ao frequentar diferentes flores. Nesse programa, os botânicos (nem sempre) recolhem o pólen e 'pincelam-no' nas outras flores como forma de aumentar a eficiência da polinização, e garantir a procriação e preservação das espécies.
Depois de acabar a estradinha cruzamos entre algumas rochas seguindo até a bifurcação na altura do segundo quilômetro. Para a esquerda segue no sentido do Abrigo Massena. Nós tomamos, à direita, que começa a subir no sentido Maciço das Prateleiras. Alguns minutos mais tarde, à esquerda da trilha tem uma grande rocha apoiada, que protege um filete de água onde enchemos o cantil. É a última água antes do Maciço.
Quando a trilha faz uma nova bifurcação dividindo entre Pedra Assentada e Prateleiras, fica muito ruim. Passamos por uma pequena depressão e começamos um trepa pedras bastante duro. No início a trilha ainda é visível, mas, antes de chegar no canto do Maciço vira uma confusão de pedras. Eu havia estudado a via, no entanto, por alguma besteira entrei pelo lado esquerdo das Prateleiras. Fui contornando e galgando as rochas até encontrar uma grande chaminé. Por dentro dela toquei pra cima sempre somente na mão, sem necessidade de pontos de ancoragem. De pedra em pedra fui ascendendo para dentro do maciço até chegar no final do corredor, uma seta pintada na parede indica que quebrando à esquerda a via continua. Fazendo um pequeno retorno saí na parede do maciço novamente. Conhecido o caminho voltei na base onde a Bruna esperava, e juntos subimos novamente.
Chegamos em uma grande rocha apoiada no Maciço. Pela borda dela passei depois a um cavalinho e por fim fui apoiando na parede onde existem dois pitons. Segui a rocha para a direita até uma fenda na pedra (quase uma chaminé) uns 20 m abaixo do cume falso. Nesse ponto tive de desistir pois a canaleta que levava para cima não possui proteção fixa e trata-se de uma cordada de pelo menos 15 m.
Frustrado, tivemos de retornar pelo mesmo caminho, com a diferença que nos trechos menos aderentes fiz segurança para a Bruna. Ela sempre desce sem necessidade de tração na corda, apenas colocamos, para ela sentir mais confiança.
Descemos tudo e dessa vez fui pelo lado direito do Maciço, que é o lado correto da via normal. Ridiculamente, depois de ter iniciado pela esquerda do maciço recusei-me a assumir o erro e voltar. Meu ego fazia acreditar que de algum modo eu acharia outra via, ou chegaria ao início da via normal por outra trilha. Mais uma vez a montanha nos ensinou quem manda, e principalmente: nosso ego é na verdade burrice.
Achar o início da trilha, correta, foi complicado. Como não há marcação na rocha cada um passa em um lugar. Nós passamos bem no pé da rocha, por um corredor entre o Maciço e uma grande rocha caída. Do outro lado, uns 70 m, a trilha é perceptível por mais 50 m quando some novamente. Daí em diante o caminho todo é sobre/entre/embaixo das rochas. Em um momento a trilha some totalmente, precisei subir uma rocha circular e caminhar sobre os grandes blocos até identificar do outro lado sinais de passagem. Percorrendo o caminho ao contrário entrei no meio das rochas como quem entra numa caverna, fazendo inúmeras manobras, inclusive descendo até um portal - um trecho de retorno para quem está indo - quando encontrei a Bruna. Do outro lado dessa passagem, agora no sentido normal - ida - tem uma marcação com número em uma estaca. Essa foi a única estaca que encontramos em toda a trilha.
Daí seguimos sobre as pedras até a Pedra do Elefante, outro ponto duro de superar. Só achamos a trilha depois de caminhar por todas as rochas e forçar a passagem por um cavalinho até o outro lado. Do lado de lá, há uma área bem desgastada onde as pessoas param para descansar ou, quem desiste fica na espera quem sobe. Então voltei por um labirinto onde há uma seta vermelha indicando o caminho. Encontrei novamente a Bruna e seguimos para o ataque final.
Depois Pedra do Elefante a trilha sobe à esquerda por um trepa pedras e sai no platô do Maciço. Após de galgar uma fenda entre dois blocos chegamos no grande bloco que precede a penúltima rampa, do lado esquerdo fica a Pedra do Elefante. Olhando para oeste há dois pitons que devem/podem ser usados para dar segurança. Num movimento lateral chegamos bem próximo da Pedra do Elefante. A partir desse ponto a rampa tem algumas agarras precárias, mas é um trecho de aderência, para quem já tem conhecimento e pratica escalada não é difícil; superável sem cordas. No entanto quem não tem conhecimentos e no mínimo já tenha praticado escalada deve usar cordas com auxílio de uma pessoa treinada. Uma queda mal administrada ali pode levar à morte.
Subi usando as saliências, falhas e/ou pequenas depressões da parede os cerca de 20 m chegando numa corcova antes do Pulo do Gato. Dali até este, usei uma das canaletas e rapidamente estava nas ancoragens. A Bruna não sentiu-se segura e recusou a subir mesmo usando as cordas. Descer o Pulo do Gato exige um rapel de 3 m ou um salto, numa condição dessas e com tantas fendas abaixo capazes de engolir um homem, essa atitude me pareceu muito imprudente apesar de ter ouvido muita gente falando que faz isso. Montei a ancoragem e rapelei.
Confiante subi mais uma corcova, e para minha surpresa dei de frente para outra depressão pouco maior que o Pulo. Frustrado novamente, retornei à corda pensando em como superar o obstáculo, desescalar sem corda era impossível, pular seria suicídio. Usar a corda num novo rapel estendido, sem protegê-la, não me surtiu muito inteligente. Sentado, pensando em como sair dessa sem o croqui, olhei para o lado oeste e lá estava uma pequena passagem contornando a corcova. Empolgado fiz o desvio saindo na última rampa. Subir esse pedaço foi a parte mais fácil e emocionante depois de tanto trabalho, quase quatro horas no maciço: eram 11:25 quando atingi o cume.
Do alto dos 2539 m, sob um céu azul de poucas nuvens, sentei e relaxei observando todo o visual do entorno, mas algo faltava; a Bruna. Depois de ter chego tão perto não conseguia sentir a missão completa.
No retorno, apesar de ter deixado a corda no Pulo do Gato - esse é o procedimento correto/ideal, subi pelo canto esquerdo agora. Um lance de duas agarras seguido de um cavalinho. Montei um rapel na chapeleta e desci a primeira rampa voltando a ter visual da Bruna.
A pesar de a Bruna ter 'desistido' de tentar o cume, achei que deveria insistir para, que provasse do êxtase da realização. Conversando percebi que ela queria, contudo, estava insegura. Insisti até que topou. Então prendi a corda na chapeleta e fiz segurança para ela no topo da lomba entre as rampas. Ela subiu numa boa.
Do Pulo do Gato até o cume foi o mesmo roteiro anterior. A sensação de ver ela fazendo cume foi incrível, sob o mesmo céu azul ela sorriu enorme com o feito. Fiz cume pela segunda vez às 12:05. Dessa vez, descansamos por mais tempo.
Desescalamos e retornamos pelo labirinto. Agora levamos apenas 40 min para chegar na base do Maciço às 13:25. De longe avistei um casal nas pedras que nos acenavam pedindo alguma informação. Só consegui entender, escutar, quando já tinha saído do labirinto. Eles tinham tentado a via mas não encontraram a passagem no labirinto e desistiram mais cedo. Indiquei a rota, seu pontos críticos, mas, eles resolveram deixar para outro dia fazer uma nova tentativa.
Trocamos algumas experiências e contatos, combinamos algum dia fazer algo em grupo. Como estávamos ali aproveitei para convidá-los a chegarmos na Pedra da Tartaruga e Pedra da Maçã. Essas duas formações ficam do lado leste do maciço, uma trilhazinha indicada na placa antes das Prateleiras leva até lá. São cerca de 400 m sem trepa pedras margeando um lago. No local é preciso usar a imaginação para enxergar as figuras, são três: além das já citadas, uma terceira é conhecida como Botas do Gigante.
Já se iam 14:35 quando nos despedimos, eles seguiram a trilha de retorno ao Abrigo Rebouças e nós tomamos à esquerda pela trilha que vai até o Morro do Couto. Esta, nos primeiros 2 km é muito tranquila, plana e sem obstáculos. Depois da primeira depressão, cruzamos uma grande caverna, uma espécie de portal com duas saídas e 50 m de comprimento, conhecida com Toca do Índio. Então começamos uma leve descida até um grande platô. Nesse ponto há um adendo da trilha que leva ao mirante do Vale das Flores, fui sozinho, mas não me vi impressionado, faziam três dias que eu via os picos de múltiplos ângulos e esse não é o melhor.
A trilha começa a contornar um e outro morro por mais 1 km quando passa a subir e descer depressões. Nossos corpos já reclamavam as dores, contudo, mantínhamos o passo. A trilha fica cada vez mais exigente, as depressões passam a ser morros de encostas íngremes ou trepa pedras. Quanto mais andávamos mais longe parece que o pico ficava. Além disso, nossa reserva de água já tinha acabado. Eu confiara na informação do casal, que havia uma fonte na trilha. Eles disseram que a água ficava entes da trilha do abrigo, no entanto, não encontrei nada. Chegamos a cogitar descer para o abrigo e abortar a travessia, mas nossa resiliência venceu.
Passamos a bifurcação do Abrigo Rebouças, e no próximo platô encontramos a dita fonte. Uma placa indica água potável, seguindo por um adendo uns 150 m em meio ao capim. Logo que entrei no caminho já pude ouvir a água correndo, é um charco. A água corre em meio à vegetação formando uma poça entre algumas rochas, o melhor ponto para encher a garrafa. A pesar da indicação de potabilidade optamos por usar clorin, já que muito capim seco cobria a fonte flutuando na água. Além de garantir a segurança usar o purificador significa mais 40 min sem água.
Menos preocupados com a sede tocamos para à frente. A cada morro que circulava a expectativa aumenta, e o cansaço já não ajuda. Para piorar o Morro do Couto está ali na frente, a impressão é que a próxima subida será o cume, no entanto, sempre tem uma nova curva, depressão. Eram 16:00 quando finalmente entramos no ataque final pelo flanco sudoeste. A trilha vai no sentido lateral até virar bruscamente à direita entrando numa matinha, e acreditem começa um calçamento de pedras. Nesse lado a incidência solar é pouca deixando a trilha encharcada, por isso, o pessoal do parque fez essa melhoria. Mais alguns metros e chegamos na placa que indica a última bifurcação.
Parei no pé da rocha esperar a Bruna que chegou em seguida. Fizemos cume às 16:25. Diferente do cume das Prateleiras, sob um vento gelado e infernal. O frio nos forçou a sair logo. Foi só o tempo de observar a beleza da Serra Fina do outro lado, nossas mãos congelavam ao tirar fotos. Descemos para o pé da rocha onde fizemos um lanche antes de começar a descida final.
Tomamos a trilha à esquerda descendo por um grotão inclinado. Não demorou e a trilha sumiu. Novamente estávamos em meio às rochas, onde não fica sinal de passagem. Minha primeira reação foi de frustação, pensei em retornar pela trilha e descer para o abrigo no meio do caminho. Só de lembrar o inferno que foi encontrar as trilha nas Prateleiras, agora cansados e com o vento, não era animador. Respirei fundo, me recompus e passei a procurar até que identifiquei lá na frente rochas desgastadas. O caminho era por ali, a parte boa é que encontramos, por outro lado, era um trepa pedra 'elogiável'. Descemos com cuidado. Acabou sendo mais fácil que aparentava. Saímos num penhasco. A única rota de passagem era por uma crista de rochas, ainda que, não vimos marcas da trilha sabíamos, era o único caminho possível. Nessa pausa olhei para trás e vi bem ao lado da parede do Couto o sinal da trilha de subida, como fizemos ao contrário o visual não fora o mesmo. Para todos os casos já descemos.
A crista, ameaçadora, não é tão perigosa. A passagem entre as rochas transmite alguma segurança, e apesar do vento, passamos tranquilos. Assim que termina a crista saímos numa estradinha, não sei pra que serve uma estradinha isolada no morro, mas estava lá. Depois de conferir no mapa, ninguém quer andar algum quilômetro a mais na trilha errada nessas horas, fomos para à esquerda. A estrada vai para os dois lados. Por 15 min o caminho é largo e o chão foi aplanado por alguém. Subitamente vira uma canaleta (entende a inutilidade da estradinha?) em meio às caratuvas.
O sol já ia colorindo o horizonte e deixando a caminhada com um visual mágico, e bem mais frio. Seguimos caminhando na direção da antena que marca o morro do lado do Posto do Marcão. Quando o horizonte ficou avermelhado chegamos na pavimentação, é a estrada que serve para manutenção da antena. Daí em diante contornamos o Morro da Antena pelo pavimento. O sol foi aos poucos sumindo, paramos algumas vezes para fotografar e admirar até que ele se foi. Saímos então na estrada principal do parque rumo ao Abrigo onde estamos acampados.
Estávamos à 30 min do abrigo. A última luz do dia dispensava a lanterna, quando olhei para o horizonte ao leste, vi um pequeno culote alaranjado. Mostrei para a Bruna. Logo tivemos a convicção de que seria a lua cheia. Ela foi lentamente se erguendo e dando um espetáculo, gigante e alaranjada esculpindo a silhueta das montanhas, imagem que ficará guardada na memória para sempre.
Às 18:05 chegamos na Ofurô. Ela estava intacta, sem sinais do lobo-guará e com meu fogareiro dentro. Nem entramos, só pegamos a comida e fomos preparar o jantar - café, farofa (ovos mexidos com farinha de milho) e alguns biscoitos. De estômago cheio, a Bruna foi organizar a cama e, fiquei esperando a carga dos celulares.
Veio um dos soldados que estão em instrução e como fez todo dia se dispôs para ajudarem caso alguém tenha algum problema de saúde. Minutos depois retornou e conversamos por algum tempo. Contou que devem subir o Agulhas Negras na próxima madrugada, às 03:20 e na outra noite o Prateleiras. Também perguntou sobre outras montanhas e revelou ter vontade de começar a fazer trilhas sem ser missão, como civil. Incentivei-o, como militar ele já possui conhecimento, agora é só seguir em frente.
Às vinte e uma horas fui deitar ao som de parte da tropa que ainda está recebendo instrução nas montanhas ao redor.
Este diário é o sétimo de uma sequência de dez dias acampados no Parque Nacional do Itatiaia na divisa entre os estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Os demais dias, parte baixa e parte alta são relatados nos diários antecedentes/subsequentes.
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