Sobre a Travessia do Faróis
Está é uma travessia única no Brasil, diferente de todas as outras que você já pode encontrar. Primeiro, que ela percorre 235 km somente pela areia, depois todo o percurso é deserto onde raramente vais encontrar algum apoio. É preciso saber se virar em todas as situações, desde os ventos que castigam até a água que precisa de algum tratamento prévio para o consumo.
O fator mais incrível é o desafio psicológico que a travessia impõe. São nada menos que 6 dias de isolamento - sem internet, telefone, outras pessoas -, ou seja, se estiver com mais alguém serão somente vocês, se estiver sozinho será solidão certa. Eu costumo gostar de situações onde precisamos aprender a conviver com nossos próprios monstros, elas nos tornam pessoas infinitamente melhores. Mas para quem não tem um bom relacionamento consigo mesmo pode se tornar um pesadelo. Não é raro os relatos de pessoas que se propuseram a desafios semelhantes e acabaram se frustrando.
Apesar de há muito tempo ser usada como rota, tanto para condução de tropas, quanto circulação de pessoas, principalmente até os anos 50 quando ainda não existia a rodovia ligando os dois municípios, a travessia caiu no gosto depois de ser divulgada pelo Globo Repórter. Hoje não é difícil encontrar grupos de caminhantes, ciclistas ou carros e motos cruzando a imensidão.
História
A região dos faróis, que engloba os dois municípios (vamos fugir da polêmica), tem muita história para contar.
Nos idos de 1777 o Tratado de Santo Ildefonso declarou que o intervalo que segue do Taim até o Chuí deveria seguir como “neutro”, ou seja, nem portugueses ou espanhóis poderiam montar bases nesse espaço sob risco de conflito. Essa condição só foi quebrada quase um século depois, em 1874 quando foi criado o município de Santa Vitória do Palmar, pertencente ao Brasil. Durante esses 80 anos, e provavelmente muitos depois, por ser considerada uma região “sem leis”, foi refúgio de criminosos e transgressores que adentravam os campos numa vida isolada; os chamados ermitões. Foram tempos tensos onde os saques e crimes eram constantes.
A costa é considerada um cemitério de navios com quase 300 naufrágio catalogados. Segundo historiadores e contos locais, a grande planície dificulta a identificação de pontos de auxílio à navegação. Una-se a isto a turbulência nas águas causada pelos frequentes ciclones que varrem a costa (por curiosidade o continente do outro lado do Atlântico, a África do Sul está a quase 7 mil quilômetros), condenaram à região essa alcunha. Conta-se ainda, por anciãos, que os “fora da lei” que viviam nas dunas acendiam fogueiras à noite que atraía os navios crentes de que se tratavam de sinalizações. Intencionalmente, as fogueiras eram acesas, ou não, quando os navios encalhavam eram saqueados. Um dos mais famosos naufrágios foi o Prince Of Wales, da Inglaterra que foi encalhado em 1861, propositalmente, depois de uma tempestade. Sua carga foi saqueada e os tripulantes encontrados mortos dias depois. Situação que causou um conflito diplomático entre Brasil e Inglaterra, só sanado quando ocorreu Guerra do Paraguai.
Isso é apenas uma parte da história dessa dimensão. Ela foi rota de Jesuítas e de exploradores espanhóis. Até recentemente há relatos de ermitões que vivem nas dunas escondidos de qualquer transeunte, nas raras vezes contatados contam histórias controversas ou incompreensíveis. Inclusive em 2021 encontrei um homem na travessia que nem a linguagem era compreensível, o relato dessa travessia está aqui. Há também relatos de cargas de madeiras nobres da Amazônia e drogas que encostaram na praia no século passado.
Atrativos
São muito. Eles servem a muitos gostos. A biodiversidade marinha, não estudamos ela, portanto não a incluímos aqui, mas se você puder contribuir entre em contato conosco. A flora também é rica, principalmente arbustiva, e com grande extensão de reflorestamento de pinus. São quatro faróis, muitos córregos, naufrágios e tragicamente muitas carcaças de animais, dentre elas: leões marinhos, focas, baleias, lobos-marinhos e principalmente tartarugas.
Há ainda o grande volume de lixo trazido pelas ondas em alguns trechos. A cena triste se agrava quando o mar fica agitado, fenômeno comum nos dias de vento sul, e mais acentuado ainda quando há ciclones em alto mar.
Molhes Oeste
Foi construído no início do século XX, com o fim de ser salvaguarda dos navios que atracam no Rio Grande. É considerado um feito da engenharia. Sua barreira projeta-se por quatro quilômetros de extensão e possui pedras de até dez toneladas. Atualmente é possível pegar uma vagoneta a vela e ir pelos molhes oceano adentro, o passeio dura 20 minutos durante os quais é possível ver golfinhos e, se tiver sorte, mergulhões.
Ruínas do Antigo Terminal Turístico
Localizada entre o Balneário Cassino e o Molhes da Barra. Hoje só existem partes da construção coberta pelas dunas, daquilo que foi um terminal de ônibus com estrutura de apoio: camping, vestuário e alimentação. O local é bem conhecido dos locais, porém os visitantes só percebem uma caixa de água a partir da praia.
Estátua de Iemanjá
É o cartão postal do Balneário Cassino. Foi esculpida pelo rio-grandino Érico Gobbi em cimento, com 2,1 m de altura e cerca de 2 toneladas. No dia 2 de fevereiro de cada ano ela recebe milhares de turistas que vem participar da Festa Rainha do Mar, assentada no final da Avenida Rio Grande, na saída para a praia.
Balneário Cassino
Construído para ser um ponto de veraneio de grandes empresários, atraídos pelas pompas do Hotel Atlântico. Recebe muitos visitantes durante o verão, apesar não ter todo aquele ar de riqueza anterior. Ainda hoje é um balneário bem conservado e com boa infraestrutura.
Navio Altair
Encalhado desde 1976, a embarcação parcialmente coberta pela areia e carcomida pela ferrugem, está à dezesseis quilômetros do Bairro-Balneário Cassino. No dia fatídico carregava trigo saído da Argentina com destino à Natal-RN. Desde o acidente foi abandonado para ser consumido pela maresia e a areia. Hoje só lhe restam pedaços do casco e partes dos mastros.
Ruína do Hotel El Aduar
Inicialmente construído para ser um ponto de parada do ônibus da rota Rio Grande x Santa Vitória do Palmar, e de estadia dos veranistas que, sonhava-se, seriam atraídos para o local. Foi abandonado em 1960, com a inauguração da estrada para o Chuí deixou de ter utilidade. Lendas no Rio Grande dão conta de que o hotel se destinaria a ser um cassino. Cerca de 3 quilômetros do Navio Altair, escondido nas dunas, no primeiro córrego depois do navio, está quase coberto. Quem chega até ele pode perceber: as ruínas, além um canal que corta os dois conjuntos de construções e partes de uma capela construída com conchas.
Farol Sarita
Construído em 1909 para dar suporte as embarcações naquela região. Com iniciais 26 metros, elevados para 37 m, seu alcance atinge os 24 km.
Farol Verga
É o mais tímido farol de toda a travessia com apenas 11 metros de altura. Foi erguido em 1964.
Farol do Albardão
Hoje possui 44 metros de altura e alcance de quase 30 quilômetros, no entanto foi o primeiro a ser construído, à época com 35 metros de altura. Também é uma base da Marinha com alojamento de marinheiros e uma casa que serve de apoio à civis em passagem, mediante agendamento prévio. Se destaca no horizonte com seus losangos em tons de um azul bem escuro contrastando com o branco.
Praia do Concheiro
Uma extensão costeira onde a areia deu lugar a milhões de pequenos pedaços de conchas e corais mortos. Consiste num desafio, pois sua gramatura faz com que os pés deformem o piso e percam tração. Mas, também tem uma beleza impar, principalmente quando olhada num plano de mais de 45º, por revelar inúmeras cores dos pedaços.
Praia Hermenegildo
Pertencente à Santa Vitória do Palmar, é uma pequena vila que se avoluma no verão devido ao intenso fluxo de turistas brasileiros e uruguaios. Também é muito frequentada por pescadores e surfistas. O aglomerado oferece campings, e estabelecimentos que servem de apoio aos passantes. Também vale a visita ao deck que comtempla uma estátua de Iemanjá e uma modesta capela.
Praia da Barra do Chuí
É o território mais meridional do Brasil e do Rio Grande do Sul. Já na divisa com o Uruguai, apenas o Arroio Chuí os separa. Pertence ao município de Santa Vitória do Palmar, apesar de ser muito próximo da meio-homônima Chuí.
Farol da Barra do Chuí
O luminoso erguido 1910 e substituído em 1949, tem alcance de 30 milhas e é considerado o mais avançado farol brasileiro. Suas cores são faixas horizontais branco e vermelho.
Parque Eólico
Ao longo de toda a praia é possível se deparar com as torres de geração de energia eólica. As centenas de torres fazem parte do maior parque eólico da América Latina, que abrange os municípios de Santa Vitória do Palmar e Chuí, o Complexo Eólico Campos Neutrais. A capacidade de geração do parque é capaz de abastecer 3 milhões de pessoas e emprega quase 4 mil funcionários em toda a cadeia.
Animais Marinhos
Aparecem em grande número, principalmente, quando o mar está agitado. Infelizmente muitos deles já estão mortos, mesmo assim é possível encontrá-los vivos se recuperando da luta contra as ondas ou prestes a sucumbir. Dentre eles estão as baleias, quase sempre mortas, leões e lobos-marinhos, pinguins, focas e muitas tartarugas de todas as espécies marinhas.
A maioria deles é vítima de redes de pesca ou são descartes de grandes embarcações comerciais, outros vêm arrastados pelas correntes. Alguns são resgatados e levados para recuperação na FURG situada no Rio Grande, inclusive há um posto do ICMBio na Estação Ecológica do Taim. Afinal, essa e a vizinha Lagoa da Mangueira são locais que podem ser visitados por quem tem mais tempo para durar na travessia, ou está de veículo automotor.
Demais Naufrágios
Além do Altair há outros naufrágios visíveis. Para estes é preciso estar muito atento e contar com o mar calmo, pois, eles estão dentro da água a alguns metros da praia. A embarcação Iaya fica uns 30 km depois do Albardão, próximo do local onde é possível avistar o telhado de outro hotel abandonado.
Também o navio inglês antes citado pode se avistado no quebrar das ondas, há ainda outros que não soubemos o nome.
Estrutura da Travessia
Praticamente nenhuma. Há apoio, como hotel, camping, mercado, apenas no início, no final da travessia e na Praia do Hermenegildo que fica cerca de 17 km da Praia da Barra do Chuí. Em tempos normais (estamos passando por uma pandemia em 2020 e 2021) é possível conseguir um local para banho e cama no Farol Albardão. Vale ressaltar que apesar de não ter custo é preciso entrar em contato com a Marinha do Brasil para conseguir autorização de pernoite no farol.
Há algumas agências que tutoram a travessia, mas não são obrigatórias. Elas servem de apoio para abrigo do vento e suporte de água e transporte de peso, contudo custam um bom valor. Quem se arrisca sem aporte deve levar toda a tralha e principalmente produto para tratamento de água. Apesar de existir água doce nos córregos ela não é potável sem tratamento. Ainda, se tratando da água, pode ser interessante estudar antecipadamente a época da travessia, pois no inverno a água pode ser bastante escassa e uma pessoa não preparada talvez não a encontre.
Locais para acampar estão por toda a parte, no entanto é uma boa ideia procurar entrar nas dunas e nas pequenas "matinhas" que existem, elas protegem do vento.
Outro ponto de extrema relevância é estar consciente da quase inexistência de pontos de fuga, a rodovia passa a quilômetros da praia e tem fluxo baixo. Nas escassas casas das dunas, quase nunca tem morador, e nos dias de semana carros transitando na areia não podem ser esperados. Sendo assim é importante se planejar muito bem e estar realmente preparado antes de uma aventura dessas.
Chegar a um dos extremos e sair do outro (início e fim da travessia) não é difícil, porém, é complicado. Para o Rio Grande, o ideal e tomar um ônibus em Porto Alegre. Duas companhias fazem o trajeto, é só chegar no terminal interurbano e perguntar. Voltar do Rio Grande é mais fácil ainda, tomando o transporte na rodoviária do município. Os horário são irregulares, mas, cobrem boa parte do dia. Entre a rodoviária do Rio Grande e o Cassino existe Uber e as linhas urbanas corriqueiras saindo da rodoviária ou do terminal na Praça Tamandaré. Quem quiser chegar no Molhe Oeste tem de tomar um ônibus para a “barra”. Perguntando nos terminais não tem erro.
O trecho entre Porto Alegre e Chuí – já que esse município está a oito quilômetros da Praia da Barra do Chuí – é mais complicado. Há poucos ônibus diários no percurso, todos operados pela empresa Planalto. Em Porto Alegre é fácil comprar passagem no terminal municipal, no entanto, a rodoviária do Chuí nem sempre fica aberta (relatado pelo próprio operador do terminal), em 2021 ela abria sempre 15 minutos antes da partida dos ônibus, e ainda não aceita cartão. Chegar até Chuí não é difícil. Um ônibus passa regularmente pela avenida da Barra do Chuí. Nesse mesmo ônibus é possível ir para Santa Vitória do Palmar, mas não é muito animador, os mesmos ônibus cobrem os dois municípios.
Tecnicamente Falando
A navegação é muito fácil já que estamos falando de uma praia, basta seguir em frente entre as dunas e a água.
Como é uma região de muito vento ter um conhecimento de como se proteger das intempéries é imprescindível ainda mais se considerarmos o risco de descargas elétricas (raios). Além disso, ter uma boa barraca com resistência aos ventos e ter mecanismos de prendê-la na areia fará muita diferença. Eu costumo usar sacos que encho de areia e depois de amarrar as varetas enterro-os dessa forma o vento não levanta a barraca.
Devido a alta incidência solar o protetor torna-se inseparável. Usar roupas leves e com proteção UV também é muito recomendado. Nessa mesma linha é bom consumir muita água. Para tê-la, ter um purificador tipo clorin é muito útil, além de tratar ele disfarça um pouco o gosto. Outra dica importante é sempre ter água reserva, esperar acabar pode levar a falta de água durante algum tempo, e com certeza não é uma coisa que você vai querer num local desses, pois, ela (falta de água) destrói seu psicológico e muitas vezes acaba com seu projeto.
Quanto a equipamentos? Como sempre é importante ter produtos confiáveis, e na medida do possível leves. Peso desnecessário ou equipamento que falhe durante a travessia será um problemão. Cargueira, calçado (confortável, pois o tipo de terreno exige muito da planta dos pés), óculos de sol, cantis, barraca e meias são super necessários.
Em relação a comida, é algo pessoal. Cada um tem suas necessidade, suas peculiaridades. Desse modo, alertamos para a necessidade de cada trekker ter autoconhecimento e estar realmente preparado. Esse preparo só é alcançado praticando, começa devagar (projetos menores) e vai evoluindo. Sempre vale a máxima de otimizar a relação peso/nutrição sem esquecer o sabor, comer a mesma coisa por dias pode ser tão ruim quanto comer porcarias.
Para Terminar
Prepare-se muito bem fisicamente. Conheça-se como pessoa, compreenda seu comportamento e depois planeje a Travessia dos Faróis. Sozinho ou com apoio siga por essa imensidão horizontal, e aproveite ao máximo a introspecção que ela permite.
Neste post temos um relato da travessia realizada em fevereiro de 2021. Ela pode dar uma dimensão de algumas situações que podem ser enfrentadas.