Sobre a Travessia
A Travessia Lagamar é um trekking de encher os olhos, tanto pela experiência física quanto a beleza e contemplação do espírito. Os cerca de 70 Km de caminhada, 105 km somando as travessias em barco, percorrem o litoral Sul de São Paulo - Cananéia, Ilha do Cardoso - e o litoral Norte do Paraná, Ilha do Superagui e Ilha das Peças.
A caminhada é de nível moderado com navegação fácil, porém bastante exigência psicológica. Geralmente dividida entre três ou quatro dias envolve uma boa programação logística, uma vez que, é necessário transpor quatro vezes os canais com auxílio de barcos de pesca ou voadeiras. As voadeiras são barcos construídos em fibra ou alumínio que, torna-os muito leves e rápidos, ideais para navegar nos canais de forma rápida e segura.
A beleza cênica da caminhada se deve às dezenas de visuais litorâneos quase intactos e muitos animais, dentre eles espécies endêmicas. Há também muita história por trás das comunidades de pescadores envolvidas.
Lagamar
É o nome dado a um dos estuários mais preservados do mundo, que abrange toda a região litorânea desde Iguapê/SP até Paranaguá/PR. Formada por mangues e uma rede de centenas de canais é um berçário natural da vida marinha e santuário da preservação dos botos.
O trekking da Travessia Lagamar percorre durante todo o percurso os parques: Parque Estadual da Ilha do Cardoso e Parque Nacional do Superagui. O último foi denominado pela UNESCO em 1999 como Patrimônio Natural da Humanidade. Os dois, como área de preservação possuem pouquíssimos moradores e e limitam a prática de atividades aos visitantes à caminhadas, remadas e observações da fauna e flora.
Curiosamente o trecho Lagamar paranaense não é muito explorado, nem divulgado. Sua extensão nem é catalogada, diferentemente da seção paulista que possui um circuito de cicloturismo demarcado e semiestruturado aos praticantes.
Flora
A Mata Atlântica que engolfa o percurso é exuberante. Compõe um colchão verde a perder de vista que encobre as encostas da Serra do Mar com muitos morros e picos que chegam a 1000 m de altitude.
Nas parte baixas, mais próximo das praias ficam os longos trechos alagados dos manguezais, dunas e restingas.
A flora apresenta diversas espécies como o jequetibá, caixetas, figueira-branca, cedro, jatobá, tapiá, palmito jussara, ipê, jacarandá, bromélias e uma infinidade de orquídeas. Ainda que, muitas delas estejam encravadas na vegetação é possível observá-las; as mais baixas na borda da restinga ou adentrando trilhas no mangue e as mais imponentes são observadas ao fazer trechos alternativos da travessia como a trilha para as Piscinas da Lage.
Fauna
Se a flora é encantadora, a fauna então salta aos olhos. Com diferentes ecossistemas que se confundem ao longo dos dias as muitas espécies vivem em harmonia, transitando entre um espaço e outro.
Dentre os espécimes das matas estão a onça-pintada, onça-parda, jaguatirica, veado-mateiro, bugio-vermelho (Ilha do Cardoso), mico-leão-da-cara-preta (endêmico do Superagui), jacaré-de-papo-amarelo (em pontos específicos dos manguezais), paca, cutia, entre outros.
Das aves se destacam o guará-vermelho (ave que já esteve à beira da extinção, facilmente avistável nos mangues), gaivotas, macuco (em risco de extinção), papagaio-da-cara-roxa (mais visto na Ilha dos Pinheiros acessível alternativamente de barco), jacutinga, jaó (ave da mata densa, em ameaça de extinção) e tucano. Há também algumas espécies de rapina como a harpia, gavião-pombo, gavião-pega-macaco etc.
Nas espécies aquáticas temos o siri-do-mangue, aratu (caranguejo), botos (golfinhos de água doce ou salobra), raias-manta (Ilha das Peças), tartaruga, e lontra.
Existem ainda muitas espécies entre répteis, aves, mamíferos etc que não caberiam aqui, e os mais interessados podem procurar por informações em cartilhas e estudos sobre os parques e a APA Guaraqueçaba.
História e Cultura
As duas cidades Paranaguá/PR e Cananéia/SP são um caso à parte. De muita relevância para a história do Brasil.
Cananéia, segundo alguns historiadores, foi a primeira cidade do país. Fundada por Martin Afonso em 1931, porém, em 1502 Américo Vespúcio já desembarcara no local. Hoje, a cidade que também foi relevante nas exportações de madeira e construção naval do século XVIII e ponto estratégico na produção pesqueira para produção de óleo de baleia, guarda um museu com muitas peças e retratos do passado, além de uma fêmea de tubarão branco empalhada. As ruas da cidade ainda tem a estrutura e fachada dos imóveis dos séculos passados. Junto da praça municipal há a Igreja São João Batista do século XVII.
Paranaguá é a cidade mais antiga do estado do Paraná, fundada em 1648. Dona de um dos portos mais movimentados do Brasil. A cidade se desenvolveu, mas seus pontos históricos continuam presentes. Além das ruas e fachadas do imóveis próximos ao píer municipal a Igreja Nossa Senhora do Rosário é ponto de interesse. Na Ilha do Valadares a cultura caiçara é que se destaca. E porque não lembrar também da Ilha do Mel, que faz parte do município de Paranaguá.
Ao longo da travessia muita história e cultura podem ser acompanhadas e partilhadas. Nos canais do Lagamar é muito comum encontrar canoas motorizadas típicas dos pescadores com famílias inteiras se dedicando ao ofício da pesca, a maioria das canoas é construída em um tronco contínuo de madeira com um leme que parece uma asa, traços que só se encontram nessa região. Outra arquitetura comum nos mangues são as construções de currais (cercas de bambu) para pesca miúda.
Na Ilha do Cardoso a ruína da Enseada da Baleia é testemunha da agressividade com que o oceano muda a paisagem ai longo dos anos. A mesma situação está presente nos bancos de areia que agora preenchem a "antiga" Barra de Ararapira. Naquela as famílias foram obrigadas a deixar seus lares e migrarem alguns quilômetros abaixo, hoje a antiga enseada já é parte mangue e outra parte desembocadura no Atlântico. Com a Barra a situação é diferente, se antes a desembocadura dava acesso fácil à pesca de mar aberto e era entrada de muitos peixes, hoje os bancos de areia ameaçam a sobrevivência dos pescadores.
A Vila de São José de Ararapira é um distrito fantasma. Hoje residem nela cerca de uma centena de habitantes. Contudo, há relatos de jesuítas no local ainda no século XVI. O distrito foi de grande importância nos séculos passados, pois, constituía um entreposto entre Cananéia e Paranaguá. Nos anos 40 as rodovias e a abertura do Canal do Varadouro tomaram lugar do transporte fluvial, forçando a vila para a decadência. Ainda restam construções da época doirada como a Igrejinha de Ararapira. Além da pesca a vida é carregada pela produção de uma aguardente saborizada, típica da Serra do Mar, a cataia. Na Barra a bebida é produzida excepcionalmente por mulheres em uma associação comunitária.
A Ilha das Peças que hoje está a se tornar um ponto concorridíssimo por famosos e magnatas que constroem suas mansões e atracam veleiros nas águas calmas da ilha, foi digna de um passado sombrio. Conta-se que o nome se deve ao papel que a ilha desempenhava durante o período de proibição do tráfico negreiro e sua definitiva abolição. Como eram proibidos de negociar pessoas no continente, os navio descarregavam na ilha, e para "disfarçar" o motivo a conversa entre os traficantes e o compradores tratava de "peças" que eram os escravos. Outra linha defende que "peças" se deve ao fato que navios traziam contrabando, ou piratas traziam, e as mercadorias jogadas no mar acabavam parando nas areias da ilha, então pessoas iam até a praia para recolher as "peças". Independente da veracidade, é possível conversar com anciãos na Ilha que darão diferentes versões da história, assim como conversarão sobre o seu espaço que está sendo engolido pelos mercenários.
Tanto na Ilha das Peças como na Ilha do Superagui é possível presenciar os espetáculos do fandango (dança típica caiçara ao som de instrumentos de corda), e um dos fenômenos culturais mais emblemáticos: todos os dias por volta das 15:00 a barca que traz/leva as pessoas para o continente atraca no píer, o observador atento se emociona ao ver tantas histórias passarem por essa estrutura em concreto. O olhos das crianças que brilham ao receberem seus pais trazendo novidades da cidade, ou apenas um doce diferente. Abraços apertados de boas vindas ou despedidas e muitas tralhas que possibilitam a vida nesses locais, pois, são poucos os afortunados que têm barcos próprios para fazer travessias carregando comida ou itens básicos de sobrevivência.
Beleza Cênica
O contraste entre o verde intenso da floresta, o marrom dos mangues, os arbustos amarelados da restinga, os tons pastéis da areia e o azul do mar que se confunde com o céu causam suspiros de encantamento. Por vezes é possível se ver no paraíso, outras se ver no oposto dele sob o sol escaldante sem poder encontrar uma sombra sequer para abrigo.
No total percorre-se dez praias de molduras e aparência distintas, uma trilha alternativa leva até as piscinas naturais da laje, manguezais e o canal por si só que já é um espetáculo.
Praia do Cambriú
Uma pequena enseada logo após o costão rochoso marca o início da travessia. O Cambriú possui cerca de 1600 m de areias finas com alguns galhos arrastados pela maré. Quatro casinhas, e uma matilha de cães felizes a correr atrás das gaivotas.
Praia do Fole Pequeno
Canto de apenas 300 m de areias que engolfam rochas e um nascer do Sol surpreendente. Emoldura por uma encosta verde de vegetação rasteira e grande pedras penduradas nos arbustos.
Praia do Fole
Irmã mais velha, da anterior, com 1 km de extensão. Assemelha-se a uma grande lua minguante com areias claras e água azulada ou esverdeada a depender do ângulo do Sol. Uma placa branca no meio do verde com a inscrição "área de camping" e, curiosamente, uma galinha desenhada, chamam a atenção. Algum vez é possível encontrar uma ou duas canoas atracadas na areia.
Praia da Laje
Esse corredor de areia branca possui 5,3 km. Apesar de a primeira impressão ser apenas uma tira de areia fácil de transpor. Não se engane! Seu psicológico será testado.
Piscinas Naturais da Laje
Às margens do rio que desemboca no pé do Morro do Cardoso fica a trilha alternativa que cruza a exuberante mata atlântica, percorrendo dezenas de pequenos córregos, cruzando por árvores imponentes até chegar no leito rochoso que desce a montanha e forma grandes piscinas de água cristalina forradas de areia.
Praia do Marujá
Nada menos que 18 km de areias amareladas. Nessa faixa é onde encontra-se pela primeira vez grupos de banhistas. Eles geralmente chegam pelo canal e ficam hospedados na Vila ao lado do canal, ou ainda vêm apenas passar o dia retornando para Cananéia antes de anoitecer.
Praia da Enseada da Baleia
Quem estiver disposto a caminhar até a abertura do canal vai encontrar além dos destroços da antiga Enseada da Baleia. Um cenário dos mais belos do litoral brasileiro: as areias finas e brancas são banhadas pelas águas calmas e pouco turvas do canal que, forma nesse ponto uma zona morta, sem ondas. Complementa o quadro as raízes salientes das espécies que formam o manguezal. Não é raro avistar bandos de guará sobrevoando o canal ou aratus perambulando entre as raízes.
Praia do Pontal da Ilha e Divisa dos Estados
A Praia que estendia o Marujá por 6 km, hoje está dividida pelo canal na altura da Enseada da Baleia. O banco de de areia seco no antigo canal de Ararapira tem atualmente coloridos guarda-sóis que protegem alguns dispostos turistas que se aventuram por esses lados. Chegar ao ponto exato da divisa dos Estados agora pode ser feito caminhando, e porque não fazer aquele traço na areia e brincar com a câmera.
Praia Deserta, Praia do Superagui
Com 27 Km de extensão, proporciona miragens no horizonte. Pouquíssimas árvores fora da restinga povoam essa imensidão. é a maior extensão de areia contínua do trajeto. Em algumas épocas do ano totalmente deserta, em outras com poucos aventureiros e alguns pescadores que acampam em cabanas precárias durante algum período de pesca farta.
Praia da Vila do Superagui
Depois de longas horas chega-se a Vila do Superagui. Com onda mansas e areias finas a vila recebe muitos visitantes, principalmente nas altas temporadas. Contudo nenhum requinte, é preciso algum espírito aventureiro. No final do dia o pôr do sol, atrás das montanhas paranaenses e os botos atrás de cardumes produzem um cenário épico no píer da vila.
Pôr do Sol
Na Serra do Ibitiraquire, se vai o Astro rei
Nas águas, pincelando tons doirados
Perfeição, de invejar pintor famoso
Cardumes, espantam, botos alvoroçados
No rosto uma gota rola, de um homem vergonhoso
Chorei!
Praia da Ilha das Peças
Pouco mais de 14 km de águas calmas e finas areias. Bucólica, não fosse as carcaças de árvores arrastadas pela maré, e o lendário farol tombado de frente para a Fortaleza da Ilha do Mel.
Termina na Vila de mesmo nome, onde também se encerra a Travessia Lagamar.
Estrutura da Travessia
Não é uma travessia para ser feita de primeira viagem. Apesar de a navegação ser bastante simples, basta seguir a praia, a logística é muito complicada e exige um planejamento prévio bem feito. São necessárias quatro travessias de barco: Cananéia x Cambriú, Marujá x Barra de Ararapira, Superagui x Ilha das Peças e Ilha das Peças x Paranaguá. A primeira pode ser bem cara, e difícil; são poucos os barcos que saem em mar aberto e atracam nas praias, isso também depende das condições do mar. Em grupo as chances são maiores de conseguir o transporte. O trajeto Marujá x Barra é um dos mais complicados de acerto; é ideal ajustar com o barqueiro antecipadamente o ponto de resgate, do contrário é preciso voltar alguns quilômetros para trás e tentar um barco na Vila do Marujá, na alta temporada eles surgem com alguma frequência, fora da temporada são raros e podem custar muito dinheiro; ajustar o resgaste é a melhor opção, porém o intervalo de erro entre o combinado e o efetivo não ode ser muito grande, logo é preciso conhecer bastante das condições de caminhada e ritmo pessoal. Os dois últimos trechos são fáceis, entre as ilhas o canal tem menos que 400 m e até carona dá para conseguir no Superagui, e também existem os barcos que fazem o trajeto para o continente todos os dias. O último detalhe da logística é que não há sinal de telefone em nenhum ponto da travessia (há quem diga que Vivo funcione, mas melhor não arriscar).
Pontos de apoio existem, porém nem sempre nos locais onde desejaríamos. Por exemplo entre a Barra de Ararapira e a Vila do Superagui são 27 km, com apenas dois moradores que, nem sempre estão em suas casas. Entre as praias do Cambriú e Marujá são 16 km sem nenhum morador fixo.
Na Praia do Cambriú tem alguns moradores, uma pousada e camping onde pode-se conseguir água e espaço para descanso, no entanto, a depender do humor do proprietário pode que nem água ele libere (veja o diário de travessia da Lagamar 2020).
Na Vila do Marujá existe alguma infraestrutura, restaurante, pousada e camping, estes últimos precisam de reserva antecipada pois a ilha possui limite de pessoas. Do lado paranaense, na Barra de Ararapira encontramos pousada e camping além de alguns itens básicos de suprimento com refrigerante, água, refrescos, restaurante (junto da pousada) e cerveja. Claro não podemos esquecer da cataia. Nas vilas das Peças e Superagui a estrutura é mais farta, encontra-se pousadas e camping; restaurantes e alguma venda com itens de suprimento além de vários bares.
Em geral não encontrará máquinas de cartão, portanto toda a despesa que não for antecipada por transferência enseja uso de dinheiro em espécie. Também é possível coletar água doce durante a caminhada, nos meses de inverno ela é mais escassa. Entre a Praia da Laje e Marujá existem três bicas de água, uma em cada entrada de trilha nas duas praias e outra (essa é mais segura) nas rochas do costão no terço mais próximo do Marujá, as três possuem mangueiras (canos) para captar água das nascentes nas encostas. Outros locais de coleta de água são os múltiplos canais que desaguam do mangue no mar, entretanto, nesse caso é preciso tratar a água, e ela nem sempre terá um gosto muito agradável.
Para Encerrar
Agora que já tem todas essas informações, pegue a mochila, reúna a tralha e percorra mais essa travessia. Neste post faço um relato da travessia no ano de 2019, pode ser útil para sentir como é o dia na areia.
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