Começamos o planejamento para uma trip em grupo, e acabamos terminando em dois. Essa acaba sendo uma sina quando se mora em uma cidade afastada das montanhas, onde a cultura do montanhismo não é tão forte.
Reuni informações, dados, e dicas. Não é segredo algum que minhas viagens geralmente não contam com guia contratado, eu mesmo navego e planejo tudo.
Havíamos levado dois meses aprendendo sobre a Serra dos Órgãos, talvez por isso as pessoas desistiram. Tiveram tempo de pensar no que fariam. Encarar uma grande aventura exige mesmo espírito livre.
Dia Primeiro
Em 19/07/19 saímos de Campo Mourão às 00:00, foram 1.100 km de estrada, cerca de 17h de viagem. Ainda bem que um dos passageiros que me acompanhou (BlaBlaBla Car) se dispôs a dirigir entre São Paulo e Nova Iguaçú.
Gastamos um dia todo na estrada. E quando chegamos em Teresópolis já se passavam das 17:50; o primeiro furo da viagem. Eu havia estimado chegar dia 20/07 antes das 17h e conseguir viajar até Petrópolis no mesmo dia ainda, dormindo próximo da portaria de lá. Doce ilusão, já era noite e tive de procurar um camping, mas tudo certo, encontramos um nas margens do parque, numa região reservada e tranquila.
Dia Segundo
Levantamos acampamento ás 06:00, que é a hora que abre (deveria abrir) o parque em Teresópolis. Chegamos na portaria para guardar o carro e lá havia um aglomero de gente. Me disseram que a recepcionista não tinha chegado ainda.
Foram 45 min de espera, enquanto isso ia aumentando a fila. Quando a mulher chegou já armou-se um fuzuê danado, o povo queria brigar ao invés de me deixar fazer check-in. Com muito trabalho consegui fazê-lo e deixei o povo lá, batendo boca.
Com o carro estacionado voltei os dois quilômetros até a portaria na esperança de um Uber levar-nos a Petrópolis. Outra trabalheira danada, uns cinco motoristas recusaram a viagem, chegaram a pedir dinheiro por fora pra fazer o carreto. Na malandragem aceitavam a corrida e depois de alguns minutos ligavam dando alguma desculpa e/ou pedindo dinheiro por fora, argumentando que não era interessante fazer o trajeto, mas se pagássemos a volta iriam. Curiosamente o sexto motorista não hesitou e nos levou ao destino, durante a viagem ele explicou que esse tipo de situação é bem comum no Rio, muitos motoristas tentam cobrar pro fora. Contudo ele não vê problemas em ir até a cidade pois é comum conseguir passageiros de retorno, basta ter paciência, enquanto isso faz algumas corridas em Petrópolis. Ele nos deixou no final do pavimento a um quilômetro da portaria.
Na portaria havia fila, como tínhamos adquirido o ingresso antecipado passamos à frente de quase todos.
Às 10:15 começamos a trilha, que entra na mata e segue margeando o rio até a primeira bifurcação. Logo se afastamos do leito e começamos a subida do vale. À nossa direita os paredões imponentes da montanha causam arrepios, a medida que vamos nos afastando dele e subindo o tamanho parece aumentar.
A trilha passa a ser bastante exigente, o zigue-zague quebra a inclinação, contudo ainda é um aclive acentuado. Fizemos uma primeira parada na Pedra do Queijo, essa formação curiosa de uma pedra esculpida pelo tempo que parece duas grande peças de queijo curado. De cima da pedra é possível avistar parte do Vale do Bomfim, de onde viemos, e ter uma primeira noção da dimensão do mesmo.
Continuamos descendo por uma cela e subindo na sequência o Ajax. Nesse ponto, um platô irregular com um poço de água potável, fizemos nosso almoço (sardinhas com pão e café) e tiramos alguns minutos extras descansando. Tempo suficiente para dois grupos pequenos passarem rumo ao Açu.
Depois de reabastecer a água caminhamos pela mata da sequência saindo uns quatrocentos metros á frente em meio à vegetação de altitude. Nesse ponto começa uma subida forte novamente, aparecem as primeiras pedras e alguns trechos encharcados. Apesar de ficar um pouco mais complicada a trilha, o visual dá-nos ânimo: a nossa frente já podemos ver os outros grupos que estão quase vencendo a subida, timidamente vemos o cruzeiro no Morro do Açu e à nossa esquerda, quase atrás o magnífico Vale do Bomfim.
A ansiedade atrapalha um pouco, ademais a tarde já vem chegando e a impressão é que cada vez fica mais longe. Levamos mais de seis horas para chegar ao Isabeloca já na parte alta, foram aproximadamente mil metros de desnível, dá para entender o cansaço. Do alto do Isabeloca podemos avistar a Baía de Guanabara e até o Cristo Redentor, com auxílio do binóculo. Estava um dia lindo, com poucas nuvens.
Fizemos uma pausa no Graças a Deus antes de seguir pela crista até o abrigo. A partir dali o visual é incrível a ponto de nem percebermos os últimos quilômetros da caminhada, também gastamos bom tempo fazendo fotos e curtindo o vento no rosto.
Chegamos nos Castelos do Açu eram 17:00, depois de identificar-se no abrigo fomos montar o acampamento. Ficamos na área logo depois do abrigo, junto com mais três barracas. Uma das barracas, bem grande, pertencia a um grupo de menino de Petrópolis, que se arriscava na travessia pela primeira vez. Eles estavam com um guia, mas quem ajudou-os a montar a barracas fui eu, eram todos inexperientes quanto a acampar.
Com a casa arrumada saímos para ver o por o sul do alto do Morro do Açu. Contornando o abrigo e seguindo à direita saímos no cruzeiro que homenageia os tantos que deixaram sua alma na montanha.
Se aproximamos da borda do morro que fica voltada para o Vale do Bomfim. Ventava bastante, então tivemos de achar um local protegido em meio as rochas. Nuvens densas escondiam o astro, num primeiro momento pensamos que seria frustrado o por do sol, quando de repente os raios cortaram o vale formando faixas no horizonte. A medida que as nuvens se moviam junto com o sol as faixas iam mudando de local e posição, um espetáculo que eu só havia visto na televisão.
Os poucos minutos que dura o final do dia, parecem ter durado horas. Ficamos tão empolgados que a noite caiu antes que deixássemos os esconderijos do vento. Na volta ainda cai em uma fenda coberta por capim entre duas rochas, só não machuquei porque estava com as mãos livres e consegui reagir rápido.
De volta na barraca fui tomar um banho gelado no abrigo para depois preparar o jantar e dormir. Quando estava deitado pronto para o sono ouvi um dos guarda parques caminhando entre as barracas e procurando pelo dono de um volume cheio de lixo que havia sido largado no banheiro. Depois de questionar todo mundo, um casal que havia montada acampamento ali se "propôs" a levar o resíduo, a pesar de justificar que não era deles.
Num primeiro momento achei meio intrusa a situação, mas refleti depois e sabendo que retirar o lixo dali é uma missão de oito quilômetros e que cada um deve sim ser responsável pelo seu resíduo, conclui que a atitude do fiscal era louvável. Tanto que dissemino essa história como exemplo de orientação para quem, talvez, não tenha essa consciência.
A noite foi boa, o único incômodo foram os ventos terríveis que varriam os campos de altitude. A voracidade era tanta que minha barraca ficou cheia de areia, apesar das duas camadas.
Dia Terceiro
O segundo dia na travessia, o terceiro da viagem, é o mais exigente. No entanto, promete ser um dos mais belos dias de caminhada já percorrido. Toda a cadeia da montanhas da Pedra do Sino ficará de frente para nós. A dificuldade será superar os mais de 1000 m acumulados em 8,5 km aproximadamente, e navegar em parte do trecho que pode não ter referências em caso de neblina.
Acordamos muito cedo e já tomei o café antes de sair para ver o nascer do sol. Do alto do Castelos do Açu esperei ansioso até que o sol surgiu às 06:35. Subiu lentamente por detrás das montanhas do conjunto Pedra do Sino, primeiramente todo o horizonte ficou alaranjado para então ir tomando tons dourados até ficar incandescente com o astro rei imponente acima das nuvens.
Retornei para o acampamento e assim que as cargueiras ficaram prontas começamos a jornada. Alguns minutos antes o grupo que ajudei no dia anterior havia partido rumo ao próximo abrigo.
O abrigo do açu vai ficando para trás a medida que nos deslocamos infiltrando no Morro do Marco. Esse costuma ser um dos trechos mais perigosos nos dias de viração, como a trilha é sobre as pedras não há marcação definida e em condições comprometidas de visibilidade é impossível se referenciar. Para piorar um erro para à esquerda leva direto para a encosta do Vale do Bomfim e se o erro for para a direita leva a lugar nenhum, ou na melhor situação para os Portais de Hércules. A única passagem é uma diagonal que desce próximo da encosta direto para o Vale da Luva.
Depois de transposto essa cela é preciso ascender o Morro da Luva pela trilha direta. A subida é puxada, mas vencemos sem muito estresse. Contornamos depois pelo Morro do Balão, nesse espaço um casal passou por nós sem cumprimentar.
Logo depois do Balão já podemos identificar ao longe o próximo obstáculo, o Elevador. O casal antipático seguiu cortando caminho pela vegetação rasteira direto para o equipamento, nós observando o desgaste nas rochas e os sinais da trilha continuamos contornando pela direita, logo o casal sumiu no grotão.
Após caminhar uns 10 min saímos na descida final para o elevador, foi quando o casal surgiu novamente atrás de nós. Eles devem ter ido bestialmente em linha reta acreditando que era só chegar no Elevador e passar, mas eles não se ligaram (sabiam) que na montanha o melhor caminho não é o mais curto e sim o mais inteligente. Ao cortar trechos é fácil sair de frente com uma fenda, costão, desfiladeiro; é dessa forma que ocorrem muito dos acidentes por inexperiência do montanhista.
Como havia um grupo grande no Elevador fizemos uma pausa de descanso na plataforma de madeira antes de seguir, ainda esperamos o casal subir para só então começar nossa ascensão.
Apesar do receio inicial minha companheira de trilha superou o obstáculo sem grandes dificuldades, apenas sofreu um pouco nos trechos onde faltam alguns degraus exigindo uma passada mais longa.
Terminando o Elevador chegamos no Morro do Dinossauro, um grande platô com a vista mais icônica de todas as travessias possíveis. À nossa frente está o conjunto da Pedra do Sino, ela no centro imponente. À medida que descemos nosso olhar para a direita vemos a Pedra do Garrafão, Dedo de Deus, Dedo de Nossa Senhora, Cabeça de Peixe, Escalavrado e outros que não me recordo o nome.
A Pedra do Garrafão merece um destaque, para mim foi amor a primeira vista. A forma como ela está posicionada e seu formato muito semelhante a uma garrafa, ademais caminharemos o resto do dia praticamente em direção à ela, sem contar que já a avistamos do Morro da Luva.
Como não podia ser diferente, escolhemos esse local para o almoço, mesmo tendo parado a pouco na base do último obstáculo. Assim que colocamos as cargueiras no chão, o grupo de novatos de Petrópolis chegou. Achei curioso pois eles tinham saído minutos antes do acampamento e estavam atrasados, e não lembrava de tê-los ultrapassado. Como tinham falado que não iriam aos Portais de Hércules aquilo não fazia sentido. Ao indagá-los sobre o fato, fiquei sabendo que haviam errado (eles e o guia) a trilha e chegado por acaso aos portais. Também contaram que o casal que vimos entrar no grotão errado tinha cometido a mesma falha no Morro do Marco, inexperientes eles acabaram seguindo-os e só se perceberam o erro quando já estavam no mirante.
Fizemos nosso almoço (pão, sardinhas, café e castanhas) e retomamos a marcha contornando o Morro do Dinossauro acompanhando os totens que balizam a trilha. A descida do Dinossauro é uma laje de rocha lisa com uns 200 m. Não há um caminho com aderência, tanto, que muitos trekkers usam uma corda como linha de vida na descida. Nós optamos por caminhar em zigue-zague valendo-se das leves fissuras na pedra e algumas irregularidades. Com algum cuidado atingimos o Vale das Antas.
Depois do vale começa uma subida interminável. Não que ela seja tão longa assim, mas, tínhamos caminhado o dia todo nos campos de altitude e agora cruzar uma mata nebular era angustiante, ademais as horas iam rápido e o caminho ainda era longo.
Superamos a mata quando saímos numa das mais emblemáticas rochas da travessia, o Dorso da Baleia. Com um pouco de imaginação é fácil perceber que realmente aparenta ser uma baleia emergindo na montanha.
Algum tempo depois da baleia chegamos aos dois últimos obstáculos do dia; primeiro é necessário fazer um mergulho dentro do Grotão desescalando a rocha. São quase 30 m de declive onde a única segurança é saber se virar nas rochas ou usar um sistema de proteção contra quedas.
O outro lado já podemos ver a trilha que sobe a Pedra do Sino. Um caminho cheio de precários degraus traçado nos únicos centímetros possíveis. À direita fica a parede da rocha intransponível e à esquerda o vale implacável e ameaçador. Apesar de intimidador é fascinante, lembra os caminhos incas nas encostas dos Andes.
Praticamente no fim dessa subida está o famoso Cavalinho. Uma rocha estreita atravessada na trilha, um salto de 2 m engolfado contra a parede da rocha e o despenhadeiro. O local apesar de tímido é perigosíssimo, um erro aqui pode ser fatal. Usamos o piton colocado na rocha para passar a corda e tracionar as cargueiras além de fazer a segurança da minha parceira. Mesmo com medo, passamos tranquilos. Agora só subir a escada e estaremos na Pedra do Sino.
Uma vez na Pedra do Sino ficamos encantados com o visual do Rio, Teresópolis entre outras cidades do vale lá embaixo. Ademais o bailar das nuvens que hora ou outra cobria o vale lá embaixo ou envolvia o cume. Apesar da magia do lugar já eram quase cinco horas e nosso cansaço demandava descer para o acampamento.
Fizemos uma pausa na Pedra da Baleia para uma foto, nesse momento os meninos de Petrópolis que estavam ainda no cume quando chegamos, passaram por nós novamente. Quando retomamos a descida não demorou para alcançá-los, andando próximo pude ver que dois deles estavam de calça jeans e botina comum. Mais uma evidência da inexperiência, ao mesmo tempo, uma prova de que é possível fazer sem a desculpa da falta de equipos.
Chegamos no abrigo, eram bem poucas barracas, escolhemos um canto mais afastado para evitar barulhos (roncos) das barracas vizinhas. O tempo não demorou para fechar, acabei desistindo de retornar ao cume ver o pôr do sol. Então, resolvi tomar um novo banho gelado no abrigo debaixo de 2º C.
Nos recolhemos nas barracas antes do anoitecer, logo mais pessoas chegaram no acampamento e os ruídos começaram. No entanto o cansaço era considerável e as conversas e música não foram suficientes para atrapalhar o sono.
Dia Quarto
Passei a alvorada na trilha, cerca de um quilômetro até o cume da Pedra do Sino mais uma vez. Já haviam pessoas no platô e outras subiam com suas lanterna a encosta pedregosa. Encontrei um canto, abrigado do vento implacável.
Lentamente o horizonte foi ganhando cores, de um vermelho-alaranjado intenso até ficar entre o laranja e o rosa. Ao longe era possível avistar os Três Picos, salientes ao leste. Para o sudeste a as cidades da baixada e bem mais ao fundo o oceano. De repente o sol veio subindo e toda a imensidão entra os Três Picos e a Pedra do Sino foi iluminada. O tapete de nuvens deixava tudo mais encantador, e a medida que o vento soprava as camadas brancas iam alterando a paisagem.
Com a luz pudemos identificar as dezenas de pessoas que povoava o cume, não demorou para começarem os bate-papos. Quase todos com os mesmos interesses, extasiados, e imaginando os próximos amanheceres nas diferentes montanhas do mundo.
Retornei para o acampamento, minha companheira já havia acordado e estava desmontando a barraca. Comecei a desfazer a minha tralha também enquanto preparava o café. Retomamos a marcha às 08:15.
A partir do abrigo a trilha começa uma descida de 9 km. Depois de cruzar o último vale de altitude entramos na mata. O antigo caminho que ligava os municípios e foi trajeto da alta classe política nos períodos do Império, hoje é uma trilha bem conservada, serpenteando as encostas, com pequenas aberturas que hora mostram Teresópolis, hora o outro lado do vale ou ainda a Granja Comari, casa da seleção canarinho. Também são comuns outros detalhes na trilha, passarelas de madeira, cascata, caverna e abrigos abandonados.
Enfim chegamos no estacionamento, a última porteira dá acesso ao setor comum do parque. Seguimos pela trilha suspensa que percorre um tablado de madeira pendurado nas árvores, com vista privilegiada de vários detalhes da Mata Atlântica remanescente.
Numa altura da trilha fizemos um pequeno desvio para a esquerda, fomos conhecer a Cachoeira de Ceci. Essa singela queda de água pura e a exuberância do verde nas encostas que inspiraram o mágico José de Alencar no seu romance mais famoso e belo, "O guarani".
Após chegar no carro e guardar a tralha, resolvi subir correndo a trilha do mirante do cartão postal. Subi em 20 min a trilha que é relativamente fácil. Quando cheguei no mirante, estava lotado, tive de ter paciência para conseguir uma foto do visual. O visual é digno de sua fama, mas fiquei intrigado mesmo foi com uma fita que vi reluzindo entre o Dedo de Deus e o Escalavrado. Imaginei ser um slack-line, mas custei acreditar até que uma montanhista que voltou de carona comigo confirmar minha suspeita.
Desci correndo novamente e em 15 min estava de chinelo embarcando no veículo. Fomos para a cidade almoçar e buscar uma passageira que iria até o terminal do Tietê de carona. Pegamos a rodovia às 13:15, restavam 1.100 quilômetros até estar novamente em casa.
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